Postagens

6.

 amanhã é meu aniversário como é o dia da coleta de lixo reciclável amanhã é tanto meu aniversário  quanto uma quarta-feira qualquer é meu aniversário assim como uma quarta com cara de quinta já que sexta-feira é feriado no brasil é meu aniversário  como não é de muita gente amanhã é meu aniversário um dia único, sequer.

5.

 assim posso pensar melhor. assim, sem um fantasma no meu cangote, ressurgindo enquanto espero pra falar em nome próprio, sumindo logo depois, quando desvio o olhar em direção ao vulto.  quantos fantasmas encarnados eu devo produzir agora? antes, pelo menos eu tinha tempo de reconhecer os corpos no IML, via um rosto desvanecer até descolar imagem e som. agora, ainda no jogo de palavras amarradas, convocam a sua dor, o seu tesão, a minha loucura.  há sempre um jeito diferente pra dizer a mesma coisa. sempre um "você evoca minha sombra, sua bruxa maldita". e eu digo, ok. e faço o que tô fazendo agora. escrevo. tomo muito café. durmo também. mas, no dia que emano a vida que deixei pra trás, lá vem você, fantasma, a sondar meu corpo são.  eu brinco, então. brinco de dona flor e seus fantasmas. mas pra falar a sério, o que eu desejo mesmo, querido, tem alma encarnada.

4.

tava aqui. tava aqui agora. escapou. li que um dos elementos do ayurveda é o éter. mais dispersivo que o ar. o ar é pesado demais pra enredar as ideias. gostei de pensar das ideias assim. como um éter que emana do corpo depois de causá-lo tontura. como, num caminho paradoxal, uma tontura do corpo que produzisse o éter e ele emanasse corpo afora, tonteando outros corpos, numa epidemia do pensar. do elaborar. do desdobrar pensamentos.  se tava aqui, me tonteando as ideias, que encontre outros corpos. que vá.

3.

 escrever é o último recurso do pensamento. escrevo não como quem escreve, mas como quem acaba escrevendo. não tem mais jeito. não cabe mais. então, abro caminho entre os escombros pra respirar. é como se fizesse aquela limpeza de final de ano na casa: separar o que vai pro lixo, o que vai pra reciclagem e o que fica. a reciclagem é a escrita. é essa elaboração do pensamento que não cabe mais na cabeça e que vira outra coisa pra ser lida por alguém, pra virar pensamento pro outro.  

2.

 fizemos um pacto, a casa e eu. e não sei quem tá por dentro, quem tá por fora. engolimo-nos, regurgitamo-nos tantas vezes. há mofo e rachaduras por todos os lados. quando amanhece, fazemos qualquer tipo de reverência ao sol, abrimos peito e janelas pro ar circular, rangemos os dentes à sinfonia do vento, não nos sentimos sós. cada canto que anda por mim, arrombando portas, arrastando móveis, a cada sopro de estar, eu faço um pouco de vida. gatos fazendo bagunça, mato crescendo no quintal. minha casa, como um quarto crescido da infância, se decora dos sonhos da noite por vir.

1.

sustentar o ruído é difícil. aquele miúdo exige abaixar o volume, as expectativas, a palpitação, até chegar nesse mínimo, direitinho, mansamente, como se caçasse passarinho. quando borboleta. algumas palavras, se muito repetidas, perdem o gozo e assustam o ruído também. hoje, quando escrevo "atravessar", já vejo o ruído escapulindo. ele nem dá mais tempo pra contextualização. quando eu estiver em frente a uma ponte agora, o que vou fazer? a agulha não vai mais enfrentar o tecido sem riscos. nem a flecha o peito. é preciso limpar os discos com vagareza pra que não se arranhe as palavras assim. minha utopia é sustentar a pulsão de vida na ponta da língua.